Conversa com Aderbal Freire-Filho

14 - 16 fev 2007


A palavra que enche o palco

"" hspace=10 src=""/fotos/galerias/PR0094001D2.jpg"" align=right >Em 1989, com "A Mulher Carioca aos 22 Anos”, o brasileiro Aderbal Freire-Filho propôs aquilo que designou de "romance-em-cena”, uma encenação de um texto não teatral, integralmente transposto para o palco. Ao actor é-lhe dado o poder de descrever e, simultaneamente, interpretar a sua personagem, ou seja, descrever com gestos o que as suas palavras vão narrando. Nesse sentido, o grupo dirigido por Aderbal faz jus ao nome – Centro de Demolição e Construção do Espectáculo. "O que diz Molero”, do português Dinis Machado, estreado no Brasil em 2003 e agora apresentado no Teatro Nacional D. Maria II, foi outro dos exercícios daquele que já se pode considerar um ‘género’. Acreditando que a relação entre a literatura e o teatro é um universo aberto à criação que merece ser explorado, Aderbal Freire-Filho continua a encher os palcos com palavras, onde o épico e o dramático podem ser presenças simultâneas. Chegou a vez das "Crónicas”, de António Lobo Antunes, trabalhadas numa oficina de actores dirigida em Lisboa de onde nascerá um novo espectáculo.

Entrevista conduzida por Ricardo Paulouro


Como surgiu o interesse de adaptar "O que diz Molero” ao teatro?
Tive com "O que diz Molero” uma experiência de prazer, pois encontrei o livro por acaso. No Brasil, era um livro desconhecido, as inúmeras edições portuguesas nunca chegaram. Ainda hoje tenho uma espécie de fantasia que me faz acreditar que só chegou o meu exemplar, uma lotaria que eu ganhei. No final dos anos 70 encontrei um único exemplar, por acaso. Na altura não o associei a qualquer relação profissional, o livro viveu dentro de mim como um filme, um quadro ou uma música, até ao momento em que se transformou, muitos anos depois, num interesse profissional. Essa viragem deveu-se a vários factores, nomeadamente por ter enveredado na trilha dos "romances-em-cena”. Depois de uma primeira experiência de adaptação bem sucedida de um romance, passei a ver "O que diz Molero” não apenas como um diálogo, mas como um espectáculo.

O que esteve na base dessa transposição literária de "O que Diz Molero” para uma obra que vive no palco?
Na verdade, motivou-me o interesse de trazer ao palco obras literárias que não fossem necessariamente dramáticas ou obras dialogadas. É comum fazerem-se adaptações de romances ao cinema e ao teatro, mas eu sabia que não queria fazer um trabalho de adaptação. Aquilo que me interessava verdadeiramente era pôr em cena todos os sabores literários e quando digo isso sei que corro o risco de parecer que faço literatura no palco. Pelo contrário, tento que a obra consiga ainda ser mais teatral. Atribui-se, por exemplo, a Artaud uma certa reacção à palavra no teatro pelo facto de ele ter dito que o palco não era o lugar de literatura. Sinto, no entanto, que Artaud queria, sim, exprimir-se contra o teatro clássico francês, que cultivava uma tradição de bem dizer e de literalizar o dramático. Artaud queria que o dramático fosse teatral, logo, se eu proponho também que o literário seja teatral, acho que sou mais artaudiano do que aqueles que negam a força da palavra no palco.

Quais os aspectos que lhe interessam reter, por exemplo, num romance?
Procuro, sobretudo, aquilo que é cénico, tentando não perder os seus sabores ao acrescentar-lhe uma cena com todas as suas riquezas, as suas possibilidades. Porque o teatro oferece-nos um sem número de possibilidades. Se é verdade que o teatro pode tudo, seria absurdo que ele não pudesse fazer a palavra. Eu acredito que o teatro pode tudo, que comporta infinitas variações e que pode usar a palavra de uma forma plenamente cénica. Interessa-me, assim, descobrir as potencialidades cénicas de um romance romance, explorando, num segundo momento, algumas das suas características mais específicas.

No caso da obra de Dinis Machado, quais foram as potencialidades do texto que mais o entusiasmaram?
Não me coibi de usar todas as formas de humor que estivessem ao meu alcance, caricaturais ou do domínio da farsa. Pareceu-me importante explorar a graça do texto, e ao mesmo tempo, manter todo o potencial lírico, aproveitando o maior número possível de aventuras, episódios e personagens. A versão original do espectáculo "O que diz Molero” durava cerca de cinco horas e, mesmo na versão actual, que dura duas horas, aproximadamente, podemos encontrar muitos dos episódios, personagens e aventuras do romance, apesar de eu trabalhar apenas com seis actores, sabendo que em cena podemos encontrar quase cem personagens.

Em que circunstancias começou a adaptar integralmente textos literários?
Comecei a ensaiar, em 1989, um romance brasileiro de um autor na época desconhecido, João de Minas – "A Mulher Carioca aos 22 Anos”. Nasceu aí a intenção de explorar as potencialidades da cena. Na altura, falava-se muito em teatro da palavra e teatro da imagem, então decidi que iria pôr muitas personagens em cena, muitas situações, intrigas e conflitos e, ao mesmo tempo, muitas palavras, todas as que estavam no romance. Até à data fiz mais dois romances em cena, para além dessa primeira experiência em 1989: em 2003, "O que diz Molero” e "O Púcaro Búlgaro” que está em cartaz no Brasil neste momento. Para além destes trabalhos tenho feito de tudo um pouco, desde clássicos a contemporâneos, quase todos textos teatrais que, reconheço, têm tido uma grande influência no trabalho dos "romances-em-cena”.

Como definiria essa expressão, "romances-em-cena”, que tem sido estruturadora do seu trabalho?
Esta expressão foi uma forma de explicar o trabalho que me interessava fazer, não uma adaptação mas um romance em palco. No fundo, é uma síntese entre o épico e o dramático que, a meu ver, é a síntese do teatro contemporâneo. Num panorama onde o teatro compete com o cinema, o teatro procura as suas especificidades e a principal talvez seja a ilusão que estabelece uma relação muito próxima com o espectador, fazendo-o também imaginar através de sugestões. O "romance-em-cena” assenta assim na imaginação despertada no espectador e nos recursos cénicos que estão ao dispor do actor, fazendo-o, simultaneamente, dizer e mostrar. Acaba por ser a convivência de uma capacidade narrativa e dramática que faz do actor um profissional mais completo.

Como concebe um espectáculo, pensa-o integralmente ou é um processo criativo que surge pouco a pouco?
Nunca penso o espectáculo antes de o ensaiar. O local de ensaio é o meu atelier de trabalho, como o atelier de um pintor. Com isto não quero obviamente dizer que fico sujeito a uma sucessão de acasos pois nesse atelier eu sou, se podemos utilizar esta palavra, científico. Leio com os actores e começo, alternadamente, a tentar encontrar em conjunto com eles discursos e práticas e, a partir da compreensão de uma dada cena, a sua expressão. Sou um desenhador, tento sempre definir a forma do espectáculo. Se dividirmos os encenadores em dois tipos – o que desenha o seu espectáculo e transmite no ensaio aos actores o espectáculo que tem em mente ou o que não pensa no espectáculo e pede aos actores que simplesmente improvisem – diria que não me enquadro em nenhum dos casos. No meu caso, é diante da presença dos actores que eu construo o meu espectáculo.

Quais as fronteiras que encontra entre o teatro e a literatura?
Nas suas origens, o teatro é literatura, nomeadamente na nossa tradição ocidental. Alguns dos nossos maiores escritores foram autores de teatro. Talvez o maior poeta de todos os tempos seja Shakespeare. Se pensarmos nos grandes nomes da literatura do século XX, encontramos ao lado de nomes como Proust ou Joyce, Beckett, que é um autor de teatro. Existe claramente uma diferença de géneros. Aquilo que faço no meu trabalho é justamente conservar as fronteiras intactas para, em seguida, as ultrapassar. Num romance adaptado, apago essas fronteiras, mas num "romance-em-cena” conservo as fronteiras da literatura, para as superar em seguida.

Prepara também, no Brasil, uma adaptação cinematográfica de "O que diz Molero”. Em que consiste esse projecto e quais as dificuldades sentidas na transposição da história para o grande ecrã?
É um projecto que já está razoavelmente adiantado, em termos de produção, equipa e roteiro. Irei trabalhar com um co-realizador e com o director de fotografia Walter Carvalho, um mestre nesta área. Eu serei o roteirista, apesar de se tratar de um roteiro diferente do seguido para a peça de teatro. Quero manter as personagens que falam como no "romance-em-cena”, jogando com a recriação da realidade que o cinema tão bem faz. Esta adaptação ao cinema desperta-me, desde logo, uma pergunta imediata: como fazer este filme sem o rodar em Lisboa, dado que a acção se passa em bairros da cidade? Curiosamente, este filme será filmado no Brasil e por brasileiros. Pretendo, no entanto, filmar num cenário relativamente teatral, mantendo a mesma estrutura cenográfica que utiliza os arquivos. Uma das diferenças residirá no facto de, ao contrário da peça, de onde, dentro dos arquivos, saem elementos imaginários, no cinema serem substituídos por elementos realistas.

Um outro projecto que tem, neste momento, em mãos é a oficina de actores que dirige no Teatro Nacional D. Maria II, a partir das "Crónicas”, de António Lobo Antunes. O que o atraiu na escolha deste texto?
Atraiu-me, desde logo, o trabalho com os actores e, obviamente, a qualidade do texto. Sou fascinado pelas "Crónicas” do Lobo Antunes, textos que me divertem, me emocionam porque falam da própria vida. Eu já conhecia outras obras deste autor, como "Os Cus de Judas”, mas fiquei absolutamente deslumbrado por estas crónicas que são pequenos episódios do quotidiano. O projecto de fazer um espectáculo a partir das "Crónicas” era algo que eu já tinha no Brasil, trabalhá-las a partir da técnica do "romance-em-cena”. Acho que as crónicas, em especial as do primeiro livro, se prestam muito a essa adaptação.

Reconhece algum tipo de afinidades entre o registo de uma Lisboa quase suburbana, em António Lobo Antunes, e o quotidiano brasileiro?
Li, recentemente, com os actores uma das crónicas onde são referidos locais absolutamente típicos de Lisboa e, apesar de eu não os conhecer, consigo apreender essa realidade porque a transponho com grande facilidade para o quotidiano que conheço.

Peter Brook disse "ensaiar é pensar em voz alta”. Reconhece o trabalho com os actores como um trabalho de criação?
Concordo inteiramente com Peter Brook, alguém que, aliás, admiro muitíssimo. Sempre que ensaio uma cena exponho antes para os actores a minha ideia, as minhas escolhas e intenções. Tudo o que lhes digo é um conjunto de pensamentos que tenho naquele momento mas que me iluminam extraordinariamente. Para pensar bem há que falar muito.

Qual é, para si, a importância de um actor?
O actor é a essência do teatro. Aquilo que distingue o actor de teatro do actor de cinema é que no teatro o actor está em processo de criação, no momento em que o espectador está presente. Tudo isso determina uma estética e uma ética.

Qual é o autor que ainda não adaptou e que gostaria de adaptar como desafio?
Sou muito mais um leitor do que um ouvinte de música ou um espectador de cinema. Tenho, por isso, sido marcado por muitos livros. Acho que nem consigo isolar um só como escritor de eleição. Agora que sinto que o tempo me começa a escassear mais, reconheço que tenho uma vontade que é a de escrever os meus próprios textos.




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