Guerras de Alecrim e Manjerona

12 - 29 out 2006

A biblioteca de O Judeu
Texto de José Oliveira Barata*

 

Trabalhando actualmente no estabelecimento de uma edição crítica do teatro de António José da Silva, cada vez mais vou sedimentando a convicção de como será importante pensar na possível biblioteca do autor, no sentido borgiano do termo.

No caso da obra de O Judeu parece verificar-se o paradoxo da simplicidade. Por um lado, toda a problemática da atribuição das várias óperas se tem feito com extrema facilidade, chegando até nós um corpus dramático que o estudioso aceita (quantas vezes acriticamente por outro, o enigmático anonimato que cobriu as obras que correram mesmo postmortem, ou ainda a morte do autor nas malhas de uma instituição que não descurava o domínio literário, levam-nos a pensar que, para o caso da produção de António José da Silva, são de reter as palavras de Rudler: «Nenhuma edição corrente tem autoridade, até ser devidamente verificada.» Se, por um lado, restringindo-nos à verdade dos processos inquisitoriais, nada nos pode levar a afirmar que os oficiais do Santo-Ofício teriam apreendido obras do autor, impressas ou manuscritas, ou ainda, por outro, nenhuma ilação se poder extrair analisando, em qualquer dos processos, a relação dos bens confiscados, tudo nos leva a concluir que, para fixarmos o legado dramático de O Judeu, teremos de ter presente uma situação frequente no domínio da crítica textual. Mas não apenas. A forma como António José da Silva trata os diversos mitos que suportam a acção dramática da maioria das suas óperas mostra-nos de modo eloquente como a invenção paródica e a espectacularidade encontravam terreno propício para originais voos. Mas quais as fábulas que O Judeu aceitou como motes teatrais para testar a sua habilidade técnica? Não andaremos longe da verdade se reunirmos em dois grupos fundamentais as fontes escolhidas pelo nosso dramaturgo: a tradição greco-latina, vulgarizada pelos exemplos espanhóis, como no caso da Esopaida, dos Encantos, das Variedades ou ainda do Precipício e a tradição peninsular, quer no seu núcleo não teatral, quer no que lhe oferecia a herança dramática do filão vicentino ou camoniano. Assim se explica, quanto a nós, a conciliação de temas cavaleirescos, como o Palmeirim ou o Amadis de Gaula, com o Quixote cervantino, com o aproveitamento dos Enfatriões de Camões. Também as Guerras — decerto a obra que, nas suas referências, mais evidencia uma estreita ligação ao quotidiano joanino — sendo em nosso entender, tributárias da mais próxima tradição portuguesa -, não excluímos, mesmo neste caso, que, mesmo que remotamente não esteja ""presente"" o texto calderoniano de La banda y la Flor (Hacer del amor agravio).

O grande acervo dramático que circulava no espaço ibérico era essencialmente produzido por escritores que dedicavam boa parte do seu tempo à reescrita de obras já prestigiadas pela chancela de Lope ou de Calderón. Mesmo quando se associavam e escreviam sob a designação de ingenios de la corte, não se afastava a hipótese da obra não ser totalmente original. Vélez de Guevara, Mira de Amescua, Rojas Zorrilla surgem frequentemente associados a Calderón. Rojas Zorrilla — apenas para citar um exemplo — reflecte na sua obra mais importante, Del Rey abajo, ninguno, a estrutura, a temática e, inclusive, o estilo do Fénix nas suas comédias de tipo rural. Não se podem menosprezar estas refundições, rotulando-as sob a pejorativa designação de ""plágio"".

Tratava-se, pelo contrário, de uma consciente compreensão do novo conceito de originalidade. Para a maioria destes escritores não se tratava tanto de escrever algo de totalmente novo. Entendia-se, pelo contrário, que também era ""criação"" refazer o espólio dramático que se herdava, tendo como objectivo final propor-lhe novas orientações de leitura e um maior aprofundamento temático, servido, na maior parte dos casos, por escrupuloso tratamento formal.

Assim se glosavam, de modo inteligente e sensível, temas de carácter tradicional, introduzindo por vezes inovadoras elementos irónicos, paralelamente a um maior aprofundamento ideológico. Não se propunha apenas uma reconstrução formal, uma vez que se procurava inflectir os temas reescritos para novas direcções, que estimulassem o pensamento e as emoções dos leitores ou espectadores.

António José da Silva tipifica entre nós, de forma paradigmática, um procedimento corrente na época, quando ""aceita"", ""manipula"" e ""reescreve"" os mitos tradicionais da herança clássica, oferecendo-os, sob novas vestes joco-sérias, ao público seu contemporâneo. Neste aspecto, Anfitrião ou Júpiter e Alcmena constituem uma oportunidade soberba para estudar tais mecanismos.

Torna-se, pois, evidente como o painel mítico herdado assumia a forma de um puzzle, sempre apto a ser construído e manipulado em função do gosto de uma plateia. Mesmo quando os autores se não afastavam da trama essencial, não deixavam, no entanto, de procurar, em outras fontes, ""condimentos"" que fizessem aproximar o espectador da proposta cénica que oscilava entre o travesti e a paródia.

Grande parte das inovações traduziam-se na introdução de personagens que nada tinham a ver com o mito tradicional e que surgiam ""transferidas"" de mito para mito, ao sabor do gosto do dramaturgo e das expectativas do público. Não menos rara era a presença, ao lado de figuras míticas, de outras personagens ""repescadas"" na tradição dramática do tempo, nomeadamente nas obras dos maiores representantes do teatro ibérico, como por exemplo Calderón.

O labiríntico mundo cénico de O Judeu não se nos afigura marcado por nenhum cânone teoricamente fundado. Perante a tradição legada ao ""escritor de comédias"", ele terá, quando muito, intuído, numa visão pragmática do fenómeno teatral, que o segredo estava em ir ao encontro de um público, por certo não particularmente exigente. E a biblioteca lida e afectivamente assimilada era, em nossa opinião, as prestigiadas comedias dos ingenios do Século de Ouro.

Tudo era possível ao aceitar o legado clássico. Nas Variedades de Proteu, Ponto, o monarca de Flegra, comenta perante o espanto de Proteu ao verificar que, ao contrário do que a ""fábula"" clássica transmitia, teria de casar com Dória e não com Cirene, destinada a Nereu: REI: Essa pergunta parece ociosa, pois antes do transporte das princesas já estava destinada Cirene para Nereu e Dória para esposa tua (Variedades, 10).

Os dados estavam dispostos não em função de uma verdade mítica, mas, como o próprio Rei esclarece, tudo se irá passar assim porque assim interessava ao desenvolvimento da ópera. Quando, no coro final, Proteu canta o seu contentamento por tudo se harmonizar com a sua vontade, demonstra claramente a tripla infidelidade sobre que repousa toda a construção da peça.

Infidelidade ao mito tradicional e infidelidade à ""subversão"" da fábula que o Rei logo no início legitimara para captar a atenção do público. A última — que não significa o reencontro com o mito tradicional — reflecte o sentido utilitário de quem se apropriava do legado clássico para fabricar um espectáculo.

As infidelidades ""justificam-se"" pela necessidade espectacular. As Variedades transformavam-se em variações, pois não remetiam exclusivamente para as ""metamorfoses"" que Proteu, como Caranguejo deixa perceber no final da ópera: Pois então leve o diabo paixões todos ficam acomodados e satisfeitos com as suas consortes, e Proteu mais que nenhum, pois com as suas variedades, e mudanças, mostrou a maior firmeza nos amores de Cirene (Variedades, 90).

 A paródia aos mitos a caricatura (tão do gosto de uma estética do inacabado) conjugava-se, pois, perfeitamente com a nova orientação que parecia motivar as releituras tradicionais. Não sendo novo, o processo de parodiar permitia um variado jogo de associações que só ganhava com a total liberdade que se conferia à imaginação.

Acreditamos que António José tinha plena consciência das apropriações que fazia, não hesitando mesmo em revelar, pela boca dos graciosos, a ""antiguidade"" dos temas que apresentava. Depois de Teseu narrar a Dédalo a forma como chegara a Colcos, Esfuziote exclama: (…) Tudo aquilo me contava minha avó [Labirinto, 20].

Mais adiante, o mesmo Esfuziote, perante a reticente intenção de Dédalo em se apresentar, logo se apressa a sugerir: (…) Vamos, senhor, diga alguma coisa, ainda que seja uma fábula [Ibidem, 22].

Tradição e inovação efabulada podiam harmonizar-se: ""tudo o mais será uma invenção a arbítrio"" em que «os acidentes da ópera serão prisões, punhais, venenos, cartas, montarias de ursos, leões e touros, tempestades, trovões, raios, sacrifícios, saltos, loucuras, etc., porque destas cousas repentinas se comovem muito os espectadores. E se pudesse introduzir uma cena, em que seja preciso sentar-se algum dos actores, outro dormir em algum bosque, ou jardim, e ao mesmo tempo sair outro para o matar, e ele acordasse (o que nunca se tem visto nos nossos teatros), isso seria chegar ao non plus ultra da admiração."" Isto estava bem claro no Teatro à Moda do italiano Benedetto Marcelo que o editor Ameno traduziu. Servia ao dramaturgo que, com tão curto espaço de vida livre, se revelava (e nos revelou) como hábil e talentoso construtor de enredos, para ""deleite de uns"" e ""curiosidade de outros"", como se escreveria em dedicatória do tempo….

 


* Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra.

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