Guerras de Alecrim e Manjerona

12 - 17 out 2006

 

O PALCO AOS GRANDES DRAMATURGOS
A IMPORTÂNCIA DE ANTÓNIO JOSÉ DA SILVA

Uma das funções do Teatro Nacional é a de proporcionar ao público o contacto com os maiores dramaturgos da História das nossas letras. António José da Silva é, neste contexto, um autor obrigatório, justificando no início da temporada 2006/2007, a organização de um ciclo dedicado àquele que ficou popularmente conhecido como O Judeu.

“Encantos de Medeia”, pelas Marionetas do Porto (em co-produção com o Teatro Nacional São João do Porto), “Guerras de Alecrim e Manjerona”, espectáculo de Paulo Matos e da Orquestra Real, e “Anfitrião”, pelo Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde (também em parceria com o TNSJ), constituem este ciclo e servem de mostra da qualidade da obra, tantas vezes desprezada, de António José da Silva.

BIOGRAFIA

António José da Silva, ""O Judeu"" (1705-1739)

António José da Silva, o Judeu, é um dos grandes nomes da História da Literatura Portuguesa e Brasileira. Nascido a 8 de Maio de 1705, no Rio de Janeiro, no seio de uma família de cristãos-novos, aí terá passado a primeira fase da sua infância. A família terá procurado na colónia sul-americana uma maior tolerância, numa altura em que os judeus eram perseguidos em Portugal e nas suas colónias. Os avós paternos, André Mendes da Silva e Maria Henriques já haviam escolhido o Rio de Janeiro, no segundo quartel do século XVII, como local de residência.

António José da Silva era filho do advogado e poeta João Mendes da Silva, que conseguiu manter a fé judaica secretamente, e de Lourença Coutinho, filha de um proprietário de uma plantação de cana-de-açucar, que não conseguiu escapar das malhas inquisitórias. Em 20 de Fevereiro de 1712, Lourença Coutinho foi presa, acusada de ser judia, e foi deportada para Portugal, a bordo da nau ""Calendária"", onde foi entregue à Santa Inquisição. João Mendes da Silva decide, nessa altura, partir para Portugal para estar próximo da esposa e leva consigo os filhos: António José (7 anos), Baltazar (doze anos) e André (dez anos). A 10 de Outubro desse ano desembarcam da nau ""Madre de Deus"" e dez meses depois os pais de António José da Silva são condenados às penas de confiscação de bens, abjuração, hábito penitencial e cárcere, onde permanecem dez dias, acabando por se estabelecerem em Lisboa. Anos mais tarde, numa das suas ""óperas"", António José da Silva chegará a escrever os seguintes versos: ""Tirana ausência / que me roubaste e me levaste / da alma o melhor / Ai de quem sente / de um bem ausente / a ingrata dor.""

Aos 21 anos já António José da Silva frequentava o curso de Direito na Universidade de Coimbra e destacava-se pela inteligência e pelas qualidades enquanto poeta. Entre os seus amigos, destacava-se o conde de Ericeira, em cuja casa se reunia regularmente um grupo de intelectuais como Francisco Xavier de Oliveira e o Padre Álvares de Aguiar. Interessado pela dramaturgia, ""o Judeu"" foi autor de uma sátira que serviu de imediato às autoridades como pretexto para a sua prisão. A 8 de Agosto de 1726, António José da Silva foi preso, juntamente com a mãe, e submetido a torturas que lhe fizeram perder a fala e que o deixaram parcialmente inválido. Após a abjuração, a penitência e o juramento de jamais cometer heresias, António José da Silva foi libertado. Concluiu o curso em 1728 e regressou a Lisboa onde, com o pai, exerceu advocacia. Apesar de se ter iniciado na profissão, passou a dedicar-se à escrita. Por volta de 1734 e 1735 casou-se com sua prima Leonor Maria de Carvalho, natural da Covilhã, que já havia sofrido as perseguições do Santo Ofício. Deste casamento nasce, em 1735, a filha Lourença.

O período de seis anos, entre 1733 e 1738, corresponde ao auge da criação literária de António José da Silva e à sua afirmação como dramaturgo. As suas sátiras e comédias ficaram conhecidas como a obra do ""Judeu"" e foram várias vezes encenadas com grande êxito. Foram-lhe atribuídas obras, publicadas em vida do autor, como: ""Labirinto de Creta"" (1736, editada por António Isidoro da Fonseca) ""As Variedades de Proteu"" (1737, idem) ""Guerras do Alecrim e Mangerona"" (1737, idem). Após a morte de António José da Silva, o editor Francisco Luís Ameno publicará estas e outras obras então inéditas: ""Vida de D.Quixote"", ""Esopaida ou Vida dEsopo"", ""Precipício de Faetonte"", ""Anfitrião ou Júpiter e Alcmena"" e ""Os Encantos de Medeia"". António José da Silva, respeitado até pelo rei, viu-se preso de novo, a 5 de Outubro de 1737, juntamente com a mulher e com a mãe, já viúva. A denúncia tinha sido feita pela escrava Leonor Nunes que acusou a família ao Tribunal do Santo Ofício. António José da Silva ficou detido na cela nº6 do ""corredor meio novo"" da prisão dos Estaus durante um ano. Foi acusado de jejuns rituais, torturado, acabando por ser condenado como herege. Razão tinha ""o Judeu"" quando escreveu na sua última ""ópera"", ""Precipício de Faetonte"": ""Ouve Dus os ecos, os clamores / de um mísero infeliz / a quem a sorte / dá na vida o rigor da mesma morte"".

A 18 de Outubro de 1739, António José da Silva foi estrangulado e queimado num Auto-de-Fé, em Lisboa, no ""Campo da Lã"". Um último momento ao qual assistiram Lourença Coutinho e Leonor Maria, que morreria pouco depois. A sua vida e a sua obra foram fonte de inspiração para muitos, entre eles, Camilo Castelo Branco, no romance ""O Judeu"" (1866), Bernardo Santareno na peça ""O Judeu"" (1966) e, mais recentemente, o filme ""O Judeu"" (1995), uma vida encenada por Jom Tob Azulay.

MGR



O JUDEU NO TEATRO NACIONAL

1983

Na temporada de 1983, durante o mês de Junho, a Companhia Tear apresentou no Teatro Nacional, com dramaturgia, direcção e encenação de Castro Guedes, o espectáculo “Os Encantos de Medeia” de «O Judeu».



Os Encantos de Medeia
de António José da Silva

Dramaturgia, direcção e encenação
Castro Guedes


Elenco
António Capelo (Sacatrapo)
Fátima Castro (Medeia)
João Paulo Costa (Jasão)
Jorge Mota (Teseu)
Teresa Nunes (Creusa)
Augusta Fontes (Arpia)
Agostinho Dinis (Rui)
Acácio Carvalho (Telemão)


1986

Na última semana de Novembro de 1986, estreava na Sala Garrett, no Teatro Nacional, “Guerras do Alecrim e Mangerona”, de António José da Silva, pela mão de Carlos Avilez. Para o encenador, esta foi uma experiência marcante: “Com António José da Silva e o seu Teatro consegui melhores experiências que me deixaram as melhores recordações, a aprender um pouco mais de minha profissão e um verdadeiro trabalho de equipa de amizade e profissionalismo.” Destaque, no programa do espectáculo, para dois pequenos ensaios de Duarte Ivo Cruz (“O Judeu, ou uma dramaturgia elíptica”) e de Jorge Listopad (“Subversão Barroca”).

Guerras do Alecrim e Mangerona

de António José da Silva


Encenação – Carlos Avilez
Cenários e Figurinos – Helena Reis
Música – Maestro Jorge Machado (adaptação livre da partitura de António Teixeira)
Apoio coreográfico – Águeda Sena
Direcção de produção – Varela Silva
Direcção de Cena – Alberto Vilar

Elenco
José Jorge Duarte (D. Gilvaz)
Igor Sampaio (D. Fuas)
Manuel Coelho (Semicúpio)
Henriqueta Maya (Clóris)
Catarina Avelar (D. Nise)
São José Lapa (Sevadilha)
Fernanda Borsatti (Fagundes)
António Anjos (D. Lancerote)
Ruy de Carvalho (D. Tibúrcio)
Vítor Telles e Sérgio Silva (Figurantes)

 

CRONOLOGIA

1705 - António José da Silva nasce no Rio de Janeiro, filho de João Mendes da Silva, advogado e poeta, e de Lourença Coutinho.

1712 - Acusada de judaísmo, a família vem para Lisboa.

1713 - João Mendes da Silva e Lourença Coutinho são condenados às penas de abjuração, cárcere e hábito penitencial e confisco de bens.

1722/1725 - António José da Silva frequenta o curso de Cânones na Universidade de Coimbra.

1726 - Lourença Coutinho é novamente presa pelo Santo Ofício e enviada para o degredo em Castro Marim. Pouco tempo depois os três filhos são também presos. António José é duramente torturado, abjura. Sai em liberdade a 23 de Outubro.

1728 - Baltasar e André são libertados.

1729 - Lourença Coutinho é libertada do degredo e regressa à companhia da família.

1733 - Estreia a ópera ""Vida do Grande D. Quixote de la Mancha e do Gordo Sancho Pança"" no Teatro do Bairro Alto.

1734 - É representada a ópera ""Esopaida ou Vida de Esopo"" no Teatro do Bairro Alto.

1735 - António José da Silva casa com Leonor Maria de Carvalho. Estreia de ""Os Encantos de Medeia"" no Teatro do Bairro Alto. Nasce Lourença, filha de António José da Silva e de Leonor Maria de Carvalho.

1736 - Estreia ""Anfitrião ou Júpiter e Alcmena"" e ""O Labirinto de Creta"" no Teatro do Bairro Alto.

1737 - Estreia da ópera joco-séria ""As Guerras do Alecrim e da Mangerona"" e de ""Variedades de Proteu"". António José da Silva é novamente preso pelo Santo Ofício com a mulher, a mãe, a tia, o irmão e a cunhada.

1738 - Estreia a ópera ""Precipício de Faetonte"" no Teatro do Bairro Alto.

1739 - Após longo processo, António José da Silva é notificado e publicamente acusado de ""convicto, negativo e relapso"". É garrotado e queimado.

1744 - É publicado, por Francisco Luís Ameno, o ""Teatro Cómico Português"", cujos dois primeiros volumes contêm as oito óperas de António José da Silva, sem menção de autoria.


SINOPSE ""Os Encantos de Medeia""

Jasão embarca na nau Argos com destino à ilha de Colcos, com o objectivo de conquistar o velo de ouro. Ao chegar à ilha, desperta duas paixões: na filha e na sobrinha do rei de Colcos, respectivamente, a princesa Medeia e Creusa. Cega pela paixão, Medeia ajuda-o a concretizar o seu objectivo, a apoderar-se do velo de ouro. Mas Jasão, ao ver-se em poder do tesouro, acaba por fugir com a sobrinha do rei, Creusa. Sentindo-se traída, Medeia move contra os amantes uma tempestade que os obriga a regressar a Colcos. O rei, ofendido por Medeia o ter roubado, casa Jasão com Creusa e dá-lhe a direcção do reino. Medeia, desesperada, foge e desaparece pelos ares.

RP

PERCURSO DA COMPANHIA

Teatro de Marionetas do Porto

O Teatro de Marionetas do Porto (TMP) formou-se em 1988 e, desde então, produziu mais de 27 espectáculos e esteve representado em diversos festivais e encontros de teatro nacionais e internacionais. Estabelecendo a sede no Teatro de Belomonte, no Porto, desde 1992, localizado no centro histórico da cidade, o TMP viu concretizado um dos seus principais objectivos: a criação do primeiro espaço desta índole existente em Portugal. Desde então, o TMP tem desenvolvido uma intensa actividade de itinerância em Portugal e no estrangeiro. O trabalho constante e a reposição de alguns espectáculos têm conquistado quer um público infantil, quer um público que chega além-fronteiras, um pouco por toda a Europa, Brasil e Cabo Verde.

O projecto da criação do TMP centrou-se sobre um núcleo de pessoas com diversas experiências artísticas e foi delineado para a produção exclusiva de espectáculos no domínio das marionetas e das formas animadas. Numa primeira fase, a companhia dedicou-se a reconstituir a tradição portuguesa, investindo na pesquisa do património popular, como é o caso do Teatro Dom Roberto (teatro de fantoches). O mesmo se verificou em “Contos d’Aldeia” (1989), onde se recorreu a elementos da cultura portuguesa, tais como o conto tradicional ou os rituais exorcistas transmontanos e a técnicas cénicas ancestrais como o Teatro de Sombras Chinês.

Progressivamente, a companhia evoluiu no sentido de apostar em criações de cariz mais experimental. “Entre a Vida e Morte” (1989) marca a diferença com a utilização das marionetas com uma expressão contemporânea que ultrapassa a visão convencional das mesmas. O teatro de marionetas pode ser, no entender do TMP, uma forma de linguagem poética e imagética que nos remete para a contemporaneidade, uma convicção bem visível sobretudo a partir de “Exit”, em 1998. Esta nova forma de linguagem teatral tem marcado um percurso pautado por actuações regulares, onde se destacam êxitos como: “Vida de Esopo” (1989), “Miséria” (1991), “Vai no Batalha” (1993), “3ª Estação” (1994), “Joanica-Puff” (1995), “Máquina-Hamlet” (1997), “Alice no País das Maravilhas” (1997), “Polegarzinho” (2002), “O Mundo de Alex” (2004), “A Cor do Céu” (2004), “Os Encantos de Medeia” (2005), “Como um Carrossel à Volta do Sol” (2006), entre outros.

A relação do teatro de marionetas com áreas como a música, a imagem ou as artes plásticas resulta também das várias experiências que os elementos do TMP têm tido ao integrarem as equipas de criadores de intérpretes de séries para televisão como “A Árvore dos Patafurdios”, “Os Amigos de Gaspar”, “Mopi” e “No Tempo dos Afonsinhos”. Entre as várias digressões em Portugal e ao estrangeiro (Dublin, Sevilha, Jerusalém, Bona, Barcelona, Frankfurt, Segóvia, Macau, Recife, Rio de Janeiro, Praga, Mindelo - Cabo Verde, Paris, Madrid, etc), são já muitas as participações em Festivais de Teatro de Marionetas, em diversos países.

A versatilidade do TMP levou à constituição de um repertório que se dedica também a outros que não apenas crianças. Desde o mundo shakespeariano, com “Macbeth” (2001), passando pelo universo do escritor irlandês contemporâneo em “Nada ou o Silêncio de Beckett” (1999), até ao mundo citadino e às diferentes formas de expressão que dele emergem, em “Paisagem Azul com Automóveis” (2001), o teatro português de fantoches cruza-se com uma diversidade de linguagens. Uma polifonia redescoberta pelo TMP que, mais do que uma experimentação, é já um marco cultural no nosso país.

MGR



ENTREVISTA AO ENCENADOR JOÃO PAULO SEARA CARDOSO

“A marioneta é o duplo do actor”


Pôs em causa os estudos ditos ‘normais’ e, pela mão do mestre António Dias, optou por seguir as pegadas do último bonecreiro itinerante. João Paulo Seara Cardoso reconhece-se hoje um herdeiro do Teatro Dom Roberto. Uma herança de três séculos que dá ainda mais significado ao nosso presente. Já lá vão 16 anos desde que um grupo de amantes do teatro de marionetas decidiu dar continuidade ao conjunto de actividades que já vinha a desenvolver. Em 1988, nasceu assim o Teatro de Marionetas do Porto (TMP), hoje uma das companhias de teatro de marionetas mais bem sucedidas nacional e internacionalmente. Ao longo deste caminho sólido que conta já com um extenso repertório, o encenador artístico e director do TMP, João Paulo Seara Cardoso, regressa a António José da Silva com a peça “Os Encantos de Medeia”. Talvez porque António José da Silva é uma referência incontornável do teatro português, o inventor de um teatro que é também “uma janela de claridade e beleza”. Nesse teatro da ilusão que é o teatro de marionetas, onde a marioneta ganha vida em frente ao olhar do espectador, a peça de António José da Silva reaviva o seu brilho de outrora. Ou não fosse esse o papel do teatro, despertar sombras e luzes, inquietações e felicidade.

Entrevista conduzida por: Margarida Gil dos Reis

Tendo chegado a frequentar Engenharia, o que o atraiu no universo das marionetas, levando-o a especializar-se nesta área?

Na verdade, a questão das marionetas surge mais tarde. Durante a minha frequência do curso de engenharia inscrevi-me num curso do Teatro Universitário do Porto e foi aí que comecei a interessar-me verdadeiramente por teatro e a pôr em causa os estudos “normais”. Foi mais tarde, quando comecei a estudar o teatro popular português e conheci o mestre António Dias, último bonecreiro itinerante, que a questão das marionetas se tornou mais séria. Até hoje...

Começa a existir em Portugal uma aposta na formação deste tipo de teatro?

Actualmente, em Portugal, tirando alguns cursos esporádicos, a formação é praticamente inexistente.

O Teatro de Marionetas do Porto é constituído por pessoas de proveniências artísticas diferentes. Essa heterogeneidade é uma condição de sucesso do TMP?

Costumávamos referir essa questão, nos primeiros tempos de vida da companhia porque, na verdade, a equipa criativa não vinha da área teatral mas da pintura, da música, da arquitectura, etc. Actualmente, o espectro de colaboradores é muito vasto, o que se relaciona com a especificidade da nossa prática teatral, muito eclética, e que recorre a variadas áreas da criação artística para-teatral, do vídeo à música electrónica, da escultura à perfomance, etc.

Recuperando a tradição do teatro de fantoches português, o que se pode fazer para renovar esta arte?

Referindo-me às duas grandes tradições do teatro popular português de bonecos, diria que, em ambos os casos, o delicado processo de transição da tradição para os tempos modernos se processou de uma forma muito feliz. No caso dos Bonecos de Santo Aleixo a recuperação, pelo Centro Dramático de Évora, foi um processo exemplar, o que me parece que também se verificou com o Teatro Dom Roberto, quando o “herdei”, há exactamente 25 anos. Houve uma genuína e sincera transmissão dos saberes antigos da parte de artistas populares para pessoas, digamos, eruditas, sem que se verificasse uma ruptura, como na maior parte dos casos de manifestações da cultura popular. Tradições teatrais com três séculos, que fazem parte da nossa memória, chegam assim ao presente, de uma forma muito feliz.

Qual é o processo de pesquisa-criação de um espectáculo, por exemplo, da natureza dos “Encantos de Medeia”?

No caso de um espectáculo em que se parte do texto, e este constitui um elemento dramatúrgico fortíssimo, como é o caso destes “Encantos de Medeia” ou de “Macbeth”(2001), claro que a pesquisa existe sempre, até evidentemente, de um ponto de vista histórico, tratando-se de obras antigas. Nunca conseguiria encenar o Judeu, se não compreendesse muito bem as circunstâncias históricas em que ele viveu, a sua própria história pessoal, a Inquisição e a mentalidade da época joanina. Para além das características peculiares do teatro barroco que muito me interessam e influenciaram na concepção do espectáculo. Mas, na verdade, a maioria das nossas criações não partem do texto como elemento primordial do processo teatral. No teatro, interessa-me muito, e isto parece óbvio, a relação entre o que se “vê” e o que se “ouve”. Mas o que se vê pode não estar estritamente relacionado com o que se ouve e o que se ouve pode estar muito para além das palavras na sua dimensão quotidiana, semântica. Interesso-me por um teatro em que as linguagens cénicas entram num jogo complexo de significados e no qual, uma sequência de movimento, uma luz, um som, a cor de um vestido, a atitude mecânica de uma marioneta, podem constituir elementos fortes, signos teatrais que apelam à inteligência e à sensibilidade do espectador, que lhe despertam a passividade e os sentidos... Ora, esta maneira de encarar o teatro como objecto artístico, obriga a um longo trabalho de pesquisa de linguagens e de experimentação, porque as coisas nem sempre são muito óbvias.

Qual é a importância do actor no teatro de marionetas?

O actor é, evidentemente, o elemento fundamental. O que acontece é que, neste tipo de teatro o actor é revelado ao espectador de uma forma controlada. Nada é linear. Joga-se constantemente na ambiguidade. A marioneta é o duplo do actor, o duplo da personagem, por vezes duplica-se a si própria (usamos frequentemente a clonagem de marionetas). É uma espécie de jogo de espelhos até ao abismo. Por convenção o actor serve-se da marioneta como intermediária do jogo teatral, o seu objectivo é tornar a ficção verosímil aos olhos do público, fazer o espectador crer na ilusão de vida própria da marioneta. Mas do que eu gosto, na verdade, é de ir para além da convenção. Subverter as regras do jogo. Por vezes o actor está na penumbra, dando a primazia visual à marioneta, mas o contrário também é muito bonito, o actor em plenitude de luz, a marioneta ou outro objecto cénico, parada, fazendo o “jogo da morte”, à espera da vida que só o actor lhe pode dar. Tudo isto é passível de causar inquietações no espectador e levá-lo a encontrar no teatro ressonâncias com a sua própria vida, com a sua memória.

Com o espectáculo “Vai no Batalha”, mudou-se a ideia de que não havia teatro de marionetas para adultos...

Depois de muitas experiências de cabaret com marionetas, que apresentávamos em  espaços nocturnos do Porto nos finais dos anos 80, e que tiveram muito sucesso, resolvemos fazer uma revista, convictos de que haveria público adulto para esse tipo de espectáculo. Na verdade, ultrapassou completamente as nossas expectativas e o espectáculo teve lotações esgotadas durante um ano no nosso pequeno Teatro de Belomonte. O “Vai no Batalha” era muito sobre uma certa poética portuense e ao mesmo tempo muito político. Estávamos no tempo em que reinava em Portugal um “príncipe da cultura” com uma distorcida visão populista das artes, em particular do teatro. O “Passa por Mim no Rossio” tinha sido elevado ao estatuto de Teatro Nacional Obrigatório (o Tenório, título de um quadro da nossa peça) e o “Vai no Batalha” constituía uma crítica feroz a esse estado de coisas e ao próprio cavaquismo. Dessa vez senti mesmo que o teatro pode ter uma fortíssima dimensão sócio-política, como nos tempos do teatro grego, e expressar o nosso amor ou a nossa revolta perante aquilo que nos rodeia, aquilo que nos entristece ou aquilo que nos alegra.

Como é o processo de formação dos actores do TMP?

Não se pode falar exactamente de um processo de formação formal. A maioria provém do Balleteatro, uma escola profissional que privilegia bastante a dimensão física do actor, o que me interessa particularmente. A aprendizagem específica das técnicas de animação de marionetas faz-se, eu diria, por contágio, com os actores mais experientes, ao longo do processo de criação do espectáculo.

Porquê este regresso a António José da Silva, depois de já ter adaptado, em 1989, a “Vida de Esopo”?

Eu sou um grande admirador de António José da Silva. Tanto como artista como na sua dimensão humana. Por um lado poupou-nos à vergonha de termos três séculos da nossa história sem dramaturgos dignos de relevo. Por outro, teve a coragem de revolucionar a escrita teatral ao incorporar a música na estrutura dramática das peças. Finalmente, admiro a sua dimensão de homem de teatro. Mantendo, com as dificuldades que se podem imaginar, o Teatro do Bairro Alto a funcionar, rodeado de inúmeros artistas, com uma regularidade de produção impressionante e com um enorme êxito. Era um grande homem que inventou um teatro que era como que uma janela de claridade e beleza, para sobreviver ao escuro e horrível terror que reinava na sua vida e na de muitos outros.

De que forma, em sua opinião, “Encantos de Medeia” combina a tradição com a contemporaneidade?

Eu confesso que o Judeu me inibe um pouco no que respeita a liberdades na encenação. Sinto que as representações feitas no Teatro do Bairro Alto, há trezentos anos seriam excepcionais, com muito bons intérpretes e um ambiente festivo. Por isso, a minha primeira necessidade, como encenador, é tentar compreender o funcionamento das representações naquela época. Como todos os elementos se articulavam, qual era o tom das interpretações, como se processavam as mudanças de cena e os efeitos cénicos... E a partir desse sentimento, reconstruir o processo de representação, oscilando entre uma certa fidelidade e uma certa transgressão. Fazendo, evidentemente as coisas à minha maneira, sentindo outro tempo, outro lugar e outras pessoas. Por isso, a noção de contemporaneidade, neste caso, é um pouco ambígua. Como traços fundamentais, nesta encenação de “Os Encantos de Medeia” o que eu faço é colocar os intérpretes à vista e fundir os papéis de actor e de cantor num só. Além disso, o palco é despido e a área de representação, que eu penso que originalmente teria cerca de dois metros de boca, é aumentada para nove metros. A maquinaria cénica, tão importante no teatro barroco, é parcialmente revelada ao espectador, reservando-lhe uma pequena surpresa para o final...

Qual a relação com o texto original em termos de adaptação?

O texto é bastante reduzido em relação ao original, cerca de 40% foi cortado. No fundo, o que se fez, foi uma “dramaturgia de conveniência”, privilegiando a acção em relação aos momentos mais retóricos, tendo noção da dificuldade de sobrevivência das marionetas em ambientes de grande densidade textual. De qualquer modo é um grande prazer fazer um texto destes, porque vamos descobrindo ao longo do processo de criação que, para além de um ritmo próprio, que advém de ser uma escrita específica para marionetas, existem centenas de pequenos pormenores que se ajustam de forma soberba à artificialidade das marionetas e à sua própria condição, enquanto duplos das personagens.

A música é outra das componentes privilegiadas nesta peça...

Sem dúvida. A música é um dos elementos fundamentais desta dramaturgia. O texto é reduzido mas mantêm-se as dezanove canções, o que dá uma maior densidade musical à peça, relativamente ao original. A música foi composta pelo Roberto Neulichedl, um compositor italiano que trabalha habitualmente connosco, com uma forte inspiração na harmonia e técnicas de composição barrocas.

Quais são os projectos futuros do TMP? Existe algum autor da sua preferência que deseje adaptar brevemente?

Neste momento, a companhia está a ensaiar um novo espectáculo, intitulado “Cabaret Molotov”, que pretende recuperar um pouco a dimensão circense do teatro de marionetas e de um certo teatro musical/cabaret dos meados do século passado. Pessoalmente, há autores que gostaria muito de fazer, no futuro. Talvez regressar a Shakespeare, com “A Tempestade”. Mas há outros autores que se adaptariam bem ao nosso universo: Brecht, por exemplo.

SINOPSE “Anfitrião”

Júpiter, deus supremo da mitologia romana, esposo da deusa Juno, admira a beleza de Alcmena, mulher de Anfitrião, general dos Tebanos. Aproveitando o facto do guerreiro estar ausente de Tebas transforma-se em Anfitrião e introduz-se na casa de Alcmena fazendo-se passar pelo marido.
Júpiter consegue iludir Alcmena e quando o verdadeiro Anfitrião regressa, vitorioso da guerra contra os Telebanos, o deus continua a usurpar-lhe o lugar e é laureado e homenageado no Senado. O verdadeiro Anfitrião, julgado impostor, é preso na sua própria casa.
Entretanto, Juno (mulher de Júpiter), disfarçada de Flérida, instala-se na casa de Alcmena e arquitecta uma forma de punir o casal amoroso.
No fim, Anfitrião e Alcmena, vítimas de uma sucessão de enganos, são ilibados graças às declarações de Júpiter e Alcmena fica grávida do seus, vindo a conceber Hércules, o mais célebre dos heróis antigos. MGR

PERCURSO DA COMPANHIA

Teatro de Formas Animadas de Vila do Conde


O TFA, uma organização teatral criada com o objectivo de dinamizar e divulgar o teatro de marionetas e outras actividades ligadas a este universo (máscaras, teatro de sombras, entre outros) teve a sua génese em 1998. Uma experiência de formação sobre o teatro de marionetas – “Coro de Bonecos de Vila do Conde”, no Centro Municipal de Juventude de Vila do Conde, deu início ao arranque deste projecto. Entre 1999 e 2002, o TFA promoveu o primeiro curso em Portugal de âmbito internacional para intérpretes desta área.

Para além das muitas apresentações realizadas para escolas, acompanhadas por debates e discussão de cariz pedagógico, ou cursos vários e oficinas de formação (cf. http://www.tfa-portugal.com), o TFA tem marcado a sua presença em vários festivais nacionais e internacionais: 6th International Meeting of the Hungarian Puppet Theatres (Hungria) Fira de Titelles de Lleida (Espanha) Festival Internacional de Títeres de Bilbao. Destaque ainda para o reconhecimento internacional da companhia que lhe valeu o prémio no Festival Découvertes – Images et Marionnettes (Bélgica) e pela União Internacional da Marioneta, aquando da sua participação no I International Festival of Puppetry Schools (Polónia).

No seu repertório contam-se já vários êxitos, tais como “Coro de Bonecos”, “Amor de D. Perlimplim com Belisa em seu jardim”, “Auto da Barca do Inferno), “Vicente”, “Mamulengo do João Redondo”, “Convidado de pedra” e “Anfitrião”. MGR



ENTREVISTA MARCELO LAFONTANA


""Quanto de alma humana caberá na espessura do papel?""


O teatro de papel, tão em voga no século XVIII em toda a Europa, foi ultrapassado pelo tempo. Assumido então como um espectáculo típico da burguesia, um passatempo de serão, acabou por se tornar uma forma de teatro popular. De acordo com Marcelo Lafontana, o director da companhia Teatro de Formas Animadas (TFA), no século XX esta forma de teatro foi resgatada e transformada numa linguagem teatral nova. António José da Silva terá sido um dos que melhor compreendeu o teatro de bonifrates, uma arte recuperada pelo TFA, já não adaptada a bonecos mas sim a figuras de papel


Entrevista conduzida por Ricardo Paulouro

- De que forma este espectáculo, ""Anfitrião"", contribui, na sua opinião, para a valorização do Teatro de Formas Animadas?
- A montagem do espectáculo ofereceu-nos uma rara oportunidade para a valorização do Teatro de Formas Animadas. Ao abordar um texto originalmente escrito para marionetas, António José da Silva compreendeu que o Teatro de Bonifrates, com as suas especificidades técnicas, seria o meio mais apropriado para chegar ao seu público e comunicar aquilo que lhe era importante. Esta co-produção do TFA de Vila do Conde com o Teatro Nacional São João deu credibilidade a este tipo de teatro, possibilitando a sua recolocação no lugar que lhe é devido, valorizando a sua produção, reconhecendo (nalguns casos reescrevendo) a sua história, e ajudando a traçar o seu futuro. Hoje posso afirmar que a alargada difusão deste espectáculo, ao nível nacional, e a sua aceitação por parte do público e crítica, tem sido também um factor marcante para o reconhecimento e a dignificação das Formas Animadas em Portugal.

- Quais foram os desafios em termos de montagem deste espectáculo?
- A nossa proposta apresentou como ponto de partida a recuperação e exploração de uma arte secular: o Teatro de Papel. No que diz respeito à forma e a linguagem final do espectáculo, o nosso ""Anfitrião"" explora elementos bastante próximos da ilustração, do cinema de animação e da banda desenhada. O recurso a soluções gráficas, em desenhos e formas bidimensionais, foi uma escolha constante para solucionar os problemas colocados no decorrer da acção, sempre em coerência com a estética do Teatro de Papel.

- Quais os motivos que levaram à escolha desta peça de António José da Silva?
- A escolha deste texto justificou-se, num primeiro momento, pela sua oportunidade dentro do projecto artístico global do Teatro Nacional São João/TFA, mas a minha disposição em levá-lo à cena deveu-se principalmente ao profundo interesse que o autor em mim sempre despertara e justifica-se sempre pela intemporalidade dos temas tratados, pela qualidade da obra e a importância do autor em causa.

- Tendo sido este texto alvo de uma adaptação, quais os aspectos que conservaram do texto original?
- A parceria com o escritor José Coutinhas viabilizou o delicado processo de adaptação da escrita. Na adaptação/encenação do texto do Judeu, quisemos manter intactos três aspectos que pareceram fundamentais: a complexidade hilariante do enredo, que mais parece uma autocrítica para um autor barroco os jogos de humor e escárnio, que ridicularizam as figuras de relevo numa sociedade estratificada e a constante mudança de espaços, situações e personagens, que surpreende e mantém viva a atenção do espectador, com elementos cénicos de forte e imediata identificação para o público.

- De que forma a crítica se cruza neste texto com a comédia?
- Grande parte desta resposta encontra-se no próprio texto da peça, e no espírito crítico, audaz e destemido com que o Judeu avaliava o mundo à sua volta, num tempo que acabaria por sacrificá-lo. Ao materializar a peça no palco – ainda que num palco diminuto – procurámos que fosse uma comédia eficaz, directa, rápida, contagiante e de gargalhada fácil (porque não?). Mas também quisemos criar uma tribuna livre, crítica e inteligente, onde pudessem ser discutidos de forma implacável alguns dos valores da nossa sociedade: relações amorosas, defesa da honra, fidelidade conjugal, injustiças sociais e, sobretudo, a impunidade dos poderosos.

- O que mudou, em termos técnicos, nas marionetas de estilo barroco e as utilizadas no Teatro de Papel?
- Para as peças apresentadas no Teatro do Bairro Alto, dirigidas pelo Judeu, utilizavam-se os Bonifrates, que eram pequenas marionetas de cortiça, de corpo inteiro, movimentadas através de arames. Os manipuladores situavam-se num plano superior aos bonecos, à semelhança das conhecidas marionetas de fios. Hoje em dia, ainda podemos apreciar esta técnica nos espectáculos dos Bonecos do Santo Aleixo, oriundos do Alentejo, ou em alguns teatros tradicionais na Bélgica e França. Para a actual montagem do ""Anfitrião"", utilizámos como ponto de partida uma outra prática do Teatro de Formas Animadas: o Teatro de Papel. Para o projecto Teatro Nacional de Papel, reconstituímos em miniatura o edifício do Teatro Nacional São João e as próprias matérias de que é feito o teatro — cenários, actores e elementos cénicos. Criámos, deste modo, um universo bi-dimensional, onde tudo é reinventado, inteiramente desenhado, colorido e recortado. A mobilidade da sua estrutura permite que o teatro e a representação cénica sejam deslocados, e atinjam todos os públicos, em qualquer lugar.

- Como encara a divulgação e valorização do teatro de marionetas, ao nível nacional?
- Em Portugal existem, hoje em dia, mais companhias teatrais ligadas às marionetas do que há alguns anos. Também surgiram e se afirmaram alguns festivais temáticos, que têm contribuído para mudar o panorama das formas animadas neste país. Infelizmente, nem sempre com a devida atenção para com as estratégias de divulgação e formação de públicos. Se, de um lado, encontrámos propostas teatrais excessivamente comerciais, na outra ponta da corda estão projectos demasiadamente elitistas, herméticos, que se afastam dos espectadores em nome de uma alegada ""experimentalidade"". Como produtores teatrais, é nossa obrigação procurar estabelecer com a população um vínculo de comunicação, colocando em discussão, através da nossa arte, os valores e as questões que realmente possam interessar ao espectador, numa linguagem que lhes seja acessível.

- Quais as preocupações de construção das personagens / figuras de papel?
- Quanto de alma humana caberá na espessura do papel? Depende do papel…ou do bonecreiro? Como já disse antes, as marionetas utilizadas pelo Judeu e aquelas que funcionam no Teatro de Papel apresentam grandes diferenças, que naturalmente tivemos presentes aquando da construção das personagens. A caracterização física identificou tipos muito concretos, com funções dramáticas bem precisas. Do trabalho minucioso com o talentoso criador das figuras, o Luís Silva, foi nascendo cada um dos bonecos e a sua personalidade foi-se traduzindo em linhas, volumes e cores. O Luís definiu brilhantemente um estilo de desenho que sintetizou muito bem os elementos de rigor histórico, assim como os pressupostos de expressividade e funcionalidade técnica, numa representação final muito lúdica, forte, viva e actual. Optámos, assim, por uma forma de representação que possibilita a utilização de um código directo e de leitura imediata, através do qual o espectador se identifica instantaneamente, libertando no riso (um riso franco e espontâneo) as opressões da realidade quotidiana. Agora, recebidos pelo Teatro Nacional Dona Maria II, gostaria de desejar para este ""Anfitrião"" (como diz Mercúrio: ""sempre a boca fala tarde quando madruga o desejo""), que ele cumpra o seu desejo na vista do seu público tão desejado: a exaltação do prazer de ver teatro, divertindo o espectador e comunicando com ele as nossas ideias, sensações e emoções.

 

SINOPSE “Guerras de Alecrim e Mangerona”

Os jovens D. Fuas e D. Gilvaz reconhecem D. Nise e D. Clóris, sobrinhas do avarento D. Lançarote. As meninas andam disfarçadas, mas revelam a sua identidade por levarem uma um ramo de alecrim, outra um ramo de mangerona.

Os galantes conseguem conquistar os favores das damas, mas sobre o romance paira esta ameaça: D. Lançarote já tem intenções de casar as raparigas com D. Tibúrcio, seu sobrinho e pede-lhe que escolha uma das duas para sua esposa.

Ajudadas pelo gracioso Semicúpio, um criador cheio de genica, as meninas conseguem porém, encontrar os seus amantes e acabarão por casar-se com eles. Semicúpio casará com a criada Sevadilha, e tudo terminará em felicidade.

ARS


Entrevista a Paulo Matos

Um espectáculo inesquecível chega à Sala Garrett

Um convite ao prazer dos sentidos

Paulo Matos vai fazer História: o homem que está por trás do enorme êxito chamado “Guerras de Alecrim e Mangerona”, estreado em 2000 na Fundação Gulbenkian, vai inscrever esta ópera cómica de António José da Silva no repertório do Teatro Nacional D. Maria II. Falámos com ele sobre a razão do seu sucesso

Entrevista conduzida por A. Ribeiro dos Santos


A. Ribeiro dos Santos - Tanto quanto se sabe, o Paulo Matos foi responsável pela primeira montagem integral das “Guerras” de António José da Silva?

Paulo Matos -
Tanto quanto sei, sim. Não posso dizer, liminarmente, que nunca foram levadas à cena na íntegra porque é uma peça frequentemente trabalhada pelas companhias, até amadoras. Mas durante a minha investigação preliminar para este espectáculo não encontrei referências a isso e o mais comum é reduzir-se o texto às suas peripécias.

- Coisa que era impensável para si...

- Acho que essas experiências cortam precisamente o que é mais interessante neste teatro e que é a própria linguagem. A peripécia que, no fundo, vem da commedia dell’arte, que se espalha pela Europa e se repete até à exaustão, é um acessório. Fundamental é a retórica, a invenção. Claro que quando confrontei a equipa – alguns dos quais eu já tinha dirigido antes e sabia que iam responder bem a este tipo de trabalho –, e lhes expliquei que íamos fazer muito texto, a primeira reacção foi de susto. Mas foi esse trabalho que se tornou fascinante: a descoberta pormenorizada da riqueza retórica do texto do António José da Silva. Se há uma verdade que este espectáculo trouxe à luz foi revelar a riqueza incomensurável desse texto, a todos os níveis: comicidade, referenciais, inteligência, jogo, relações sociais...

- A ideia foi originalmente sua?

- Nasceu de conversas com a Capela Real (a orquestra barroca). Eles falaram-me dos manuscritos do António Teixeira, que tinham acabado de ser descobertos… Aliás, têm vindo a ser descobertos aos poucos. Primeiro foi Vila Viçosa, depois o Brasil… Achei que era um projecto fantástico: juntar os manuscritos ao texto integral da peça, que eu conhecia. Voltei a reler António José da Silva, o nosso ex-libris maior do Barroco, para me voltar a confrontar com este facto: é um autor europeu, do nível dos melhores que havia na época.

- O seu espectáculo revela isso mesmo: que é óbvio que o texto é superior, que a música é superior. Que havia um tesouro por explorar...

- Mas se eu pegar na peça e tentar fazer ver o que há nela de maravilhoso, à primeira leitura não ia lá. A princípio, o texto é um susto.

- Demo-lo na escola e foi assustador...

- Na escola começa-se ao contrário. Começa-se com Gil Vicente e António José da Silva quando se é muito pequeno e não se tem capacidade para perceber a língua arcaica que era o nosso português antigo. Quando somos crescidinhos e temos maior entendimento, então entramos no contemporâneo. Ainda estou para perceber quem é que inventou este disparate e quem é que o perpetua. Não se descobre o António José da Silva numa primeira leitura. É um acto de coragem e persistência. Mas compensa. A partir de certa altura, os nossos ensaios eram uma descoberta de risos permanentes: parecíamos crianças a descobrir as graças do texto...

- Decidiu-se pelas “Guerras” e não por outro texto qualquer porque faz parte do currículo escolar ou porque é por muitos considerada a obra-prima do Judeu?

- Nem uma nem outra razões. Foi mesmo por causa da descoberta das partituras das óperas.

- Pôs os bonecos a contracenar com os actores porque acredita que no século XVIII o António José da Silva fazia o mesmo. Mas não há certezas…

- É um ‘feeling’ meu. A questão é esta: está provado, porque há muitas referências a isso, que as peças do António José da Silva se destinavam ao teatro de bonifrates. Há citações históricas, há relatos do que acontecia no Teatro do Bairro Alto… O que não consigo acreditar é que esta ópera de seis horas – que eram seis horas, como no Shakespeare, uma longa jornada onde se comia pelo meio e tudo... – fosse um universo confinado às marionetas. Tinha de haver, obrigatoriamente, uma belíssima orquestra, visível para o público, tinha de haver belíssimos actores, que diziam o texto...

- E esses actores não podiam estar sempre escondidos atrás dos bonecos…

- Como era possível? É só uma intuição, e não tenho forma de comprovar isto, mas achei que devia explorar esta possibilidade. Há um teatrinho de marionetas, que está num espaço semi-urbano, uma espécie de praça pública, e esse teatrinho vai tresvazando e deixando aparecer, por trás dele, os actores de carne e osso! A partir daí, todo o universo é possível. Mas volto a dizer que é apenas uma intuição. Não é uma descoberta científica nem hist"

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